Quarta-feira de manhã, deveriam ser umas oito e meia, nove
horas, estava eu a vestir-me após a higiene matinal, quando, de supetão, Lurdes Rata me entra quarto-a-dentro, de aspirador, pano do pó e língua afiada,
apanhando-me de chicharro pendurado. Procurei cobrir as vergonhas com o que
tinha à mão, uma peúga.
- Então? Já não se bate à porta? – perguntei eu sentindo as
bochechas roborizarem e a incomodidade do bicho que continuava ao léu em mais
de um terço, espreitando com ar apalermado por de trás da peúga 42, de biqueira
reforçada.
- Deixe lá, não se preocupe que estou habituada a ver misérias
– respondeu pronta a sopeira, vigiando a fera adormecida pelo canto do olho. Não fosse o diabo tecê-las...
- Miséria? Miséria? Isso é na Grécia, nós cá não temos disso,
quanto muito temos fome.
- Olha, olha… e a fome não é miséria? – retorquiu Lurdes com
irritação.
Não cedi.
- Miséria é outra coisa. A fome mata-se, todos ajudam e a
coisa fica resolvida – respondi procurando mostrar indiferença.
- Pois olhe, fique sabendo que aquilo que me paga é tão
pouco que miséria é haver dias em que quero dar de comer aos meus garotos e não
tenho. Você não sabe o que é a necessidade. Você ainda não percebeu que só o
continuo a aturar porque preciso? Devia viver com o que eu vivo para saber o
que era doce.
Matreira, Lurdes tentava conquistar-me um sentimento de pena. Ttinha
de reagir sem vacilar - Se calhar querias comer bifes todos os dias, não? –
retorqui.
Lurde virou-me costas. Não contendo as lágrimas ligou o
aspirador, ignorando-me naquela triste figura.
Aproveitando a aberta, alcancei a toalha de cima da cama e
cobri-me da cintura para baixo. Obviamente que o pranto de Lurdes era para me amaciar. As mulheres têm
destas coisas, sabem como provocar sentimentos num homem. Contudo, a situação
não se compadecia com momentos de fraqueza. Retomei o diálogo procurando que a
concertação levasse Lurdes Rata a perceber o que realmente estava em causa.
Procurei um registo melodramático e recomecei.
- Olha Lurdes, vê se percebes uma coisa. A vida está muito
difícil para todos e se não te pago mais é porque não posso. Aliás, tenho…
temos, queria eu dizer, de refund… ou melhor, reorganizar as taref… - Lurdes
cortou-me a palavra, lançando-me um olhar de desdém.
- Gaste menos em viagens, em vinhos, em presuntos e nessas
merdas todas, que já tem mais dinheiro para me pagar.
Lurdes não percebia o óbvio, tive de lhe explicar tentando
manter a calma institucional e o registo monocórdico do professor que ensina o
bê-á-bá aos putos.
- Não estás a compreender. Daquilo que eu recebo, isso que
tu dizes são amendoins, a maior parte vai para te pagar. A maior parte da despesa que tenho é contigo. Se quero reduzir as despesas tenho de te pagar menos, poi há coisas de que não
posso prescindir, tenho de manter alguma qualidade de vida. Se eu quero poupar
para trocar de carro ou outra coisa do género, tenho de te pagar menos. Custa dizer
isto mas é a verdade e, infelizmente, a única alternativa. Percebes o que eu quero dizer?
- Não é não! Não é não! Há outra alternativa e sabe qual é? Passa você a fazer
o comer, a lavar a roupa e a limpar a merda que faz. Percebeu o que eu disse?
Lurdes virou costas e deixou-me enrolado à toalha de chicharro pendurado. O pobre bicho parecia não perceber peva do que se estava a passar. Senti-me incompreendido. Estranhamente,
um forte amargo a fel invadiu-me a boca e a alma. Corri à cozinha a abrir uma Pêra-Manca
de 2005, para me tirar o gosto. Um vinho excepcional. Por momentos senti-me um pequeno burguês.