11/12/12

Pequeno Conto

 
Desde que fiz da rua, casa, após ter sido abandonado à minha sorte ainda muito jovem, que acordo invariavelmente com a mesma sensação de estomago vazio. É por isso que, há já um ror de anos - não sei precisar quantos - cumpro religiosamente o mesmo ritual ao dealbar do dia, quando os primeiros raios da manhã fundem o cizento-negro da noite, procuro no contentor mais próximo qualquer coisa para me matar a fome e para serenar os músculos rígidos e retesados do frio e da geada da noite.
Mas os tempos não estão fáceis. Até no lixo se nota que o país enfrenta uma grave crise. Encontrar côdeas de pão, ossos ou restos de comida é cada vez mais raro e mais disputado.
Tenho um amigo que diz gostar de ver as traseiras das casas e dos prédios, pois dessa forma compreende melhor como as pessoas são e como vivem. É um ponto de vista interessante. Apenas acrescentaria que no lixo também se percebe como as pessoas enfrentam o dia-a-dia. Em tempos de fartura o desperdício é uma coisa que vocês não imaginam.
Viver na rua não é fácil. Os olhos remelosos e o aspecto sujo e desleixado não abonam em meu favor e por isso, não raras vezes sou corrido pelo meu aspecto. Eu sei que nos dias de hoje a imagem é extremamente importante. Fundamental, até. Mas será que alguém já se questionou que, não tendo eu pedido para nascer, sou à partida prejudicado pelo que não tenho nem aparento? Mas, mais profundo. E será que alguém já se questionou se por detrás deste aspecto miserável não poderão existir atributos tão raros nos dias que correm como, a doçura, a cumplicidade, a lealdade?
Eu sei que pode parecer estranho alguém na minha condição ter este tipo de devaneios introspectivos. Distúrbios. Nada mais errado. São apenas pensamentos que fluem como flui o sangue, os dias ou até mesmo a fantasia.
Não tenho muitos amigos. Amigos mesmo – quero eu dizer. Uns dois ou três, talvez. Mas tenho um especial. É muito mais velho do que eu e diz que nunca trocaria a rua, a sua liberdade, pelo conforto de uma “prisão”. E eu, só para o picar, costumo perguntar-lhe – de que te serve a tua liberdade se tens fome, se passas frio, se és escorraçado por viveres na rua?- e ele, cioso dos seus princípios, costuma olhar-me com aquele ar superior de quem já passou muito na vida e responde  – de que serve não teres fome, nem frio e tudo o resto, se não tiveres liberdade?
Mas do que eu gosto mesmo é ir ver os velhos jogar às cartas nos bancos de pedra do jardim. Às vezes até me chego a eles. Nunca me maltrataram. A vida ensinou-lhes muito…
Inimigos? Tenho um! Pelo menos. Chama-se Gaspar e gosta de gozar comigo. Corre que se farta e nunca o consegui apanhar. Diz que tem sete vidas e talvez por isso pense que a forma desleixada como vive e age não tem consequências. Talvez um dia tenha azar.
Bom, agora vou ter de me ir embora. Vem aí o parvalhão Chico-Zé, um puto mimado e tolo que se costuma divertir a correr-me à pedrada. Um dia hei-de apanhá-lo desprevenido e mordo-lhe as canelas. Não me chame eu Faísca!...
Ser cão não é nada fácil. Vocês me dirão.
 

1 comentário:

  1. De início julguei que se estava a referir a uma pessoa, por isso me fez recordar o livro "Na Penúria em Paris e em Londres", de George Orwell.

    Um óptimo livro para ajudar a entender como funciona a mente, e o que pode fazer a diferença no dia a dia de um mendigo.

    Não resisto a deixar aqui algumas frases (desse livro) que vão de encontro ao espírito deste seu texto:

    "(…) vi um tipo que não tinha onde cair morto, um vagabundo, avançar na minha direcção; depois, quando olhei melhor, vi que era eu próprio, reflectido na montra de uma loja. A porcaria invadira-me já a cara. Porque a porcaria respeita muito as pessoas antes de as atacar; deixa-nos em paz, quando estamos bem vestidos, mas logo que ficamos sem colarinho, cai-nos em cima por todos os lados"

    "Pela primeira vez notei também como a atitude das mulheres varia segundo o que um homem traz vestido. Quando um homem mal vestido se cruza com elas, as mulheres desviam-se com um movimento de repulsa bastante visível, como se evitassem um gato morto caído no caminho. As roupas são um instrumento poderoso. Vestido como um vagabundo, é muito difícil, pelo menos durante o primeiro dia, uma pessoa não se sentir autenticamente degradada. Trata-se talvez da mesma vergonha, irracional, mas tremendamente efectiva, que se sente quando se passa uma primeira noite na prisão"

    ". Sentia-me terrivelmente decepcionado, porque autorizara, entretanto, as tripas a esperarem por comida, erro capital quando se passa fome"

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