29/10/12

Auto-avaliação

 
Permitam-me que vos conte uma pequena história, sem grande importância.
Por volta de 77/78, não sei precisar ao certo, num vulgar dia de Outono, por sinal de intenso nevoeiro, fui abordado pelos vizinhos para liderar a Comissão de Moradores do Casal da Formiga. De imediato senti as duas habituais experiências físico-químicas que o ser humano experimenta nestas situações – uma tumescência no ego e uma lasciva vertigem (mais tarde um ajudante de farmácia explicou-me que se trata daquilo a que os cientistas do comportamento chamam de “vertigem do poder”, neste caso, de um micro-poder).
Ufano e a arfar confiança, assumi a modéstia dos predestinados e cumpri o protocolo, pedi uns dias “para pensar e para consultar a família”, família que à data se resumia a uma fulana das Trutas que trabalhava por turnos na Ricardo Galo e com quem eu mantinha uma picante e tórrida aventura extra-conjugal nas barbas do marido, e o meu fiel Bolinhas, um cão notável que ía comigo à caça e às gajas, e de quem tenho muitas saudades. Todo o resto da “família” estava de trombas comigo e já só me dirigiam a palavra para alguns mimos - de “camelo” para cima. Enfim, já um gajo não pode ser complicado…
É evidente que o convite me entusiasmou – “é porque viram em mim qualidades, porra!... Mas será que só isso chega? Porra!” Esta inquietação fez-me de facto pensar alguns dias e levou-me a recordar uma frase que o meu pai me segredou no primeiro dia que entrei nos portões da fábrica e que jamais esquecerei – “tem orgulho naquilo que fazes com competência, mas nunca te queiras fazer passar por aquilo que não és. Se és um bom cantoneiro, óptimo, é essa a tarefa que todos esperam que desempenhes com garbo! Se és um bom médico, óptimo, é esse o papel que todos esperam que desempenhes com generosidade. Se és um aldrabão, podes ser cantoneiro, médico ou regedor, pois a incompetência está ao alcance de qualquer atrevido!”
A equação tornou-se por isso mais simples, embora o processo de auto-avaliação não o fosse, apenas havia que ponderar se reunia o perfil, os predicados e as capacidades necessárias a um bom desempenho do cargo: capacidade de liderança, de decisão, de auscultação, de auto-crítica, de motivação, de visão estratégica, de planeamento táctico, de coordenação operacional, etc. Concluí que não reunia as condições mínimas, o que transmiti aos vizinhos, sugerindo que me teriam sobrestimado e que lhes estaria a fazer um grande favor em não aceitar o convite. Reafirmei contudo a minha disponibilidade para continuar a trabalhar na Comissão como até aí. Volvidos alguns dias o plenário de moradores elegeu um papagaio qualquer, um fulano pedante e bem-falante, casado com uma Florinda dos Outeirinhos, uma tipa de nariz empinado que o empurrou para o cargo e que lhe dizia a toda a hora o que deveria fazer.
Não sei porquê mas às vezes lembro-me destas histórias, sem grande importância.
 

5 comentários:

  1. Uma vida cheia de histórias mas contadas com humor.
    Depois de tantas peripécias acabou revelando-nos que o pai era um sábio.

    "tem orgulho naquilo que fazes e faz sempre o melhor que puderes"

    Só por isto valeu ler os contos do vigário...

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  2. Mas que palhançada é esta? Explique-se homem, deixe-se de meias palavras.

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  3. Caro Relaxoterapeuta,
    Sorte sua, a do nevoeiro intenso no dia do convite. Foi providencial. Esperar que clareasse, deu-lhe firmeza para resistir à lascívia e recusar o que já sabia que não queria, porque não é da sua índole pôr-se em bicos de pés. Nem isso lhe faz falta, como a vida tem provado.
    Mal comparando, como muito mais gente revejo-me um bom par de vezes na sua estória, e talvez como ao autor, a recordação do nariz das Florindas dos Outeirinhos, e dos maridos papagaios trazem-me ao semblante um raro sorriso de prazer.
    Obrigado.

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  4. Caro Relaxoterapeuta.
    Como consegue numa pequena estória ficcionada, fazer uma análise (bem disposta,mas profunda) do que por aí vai.

    Desculpe a pergunta (mas a contenção de custos obrigou-o a despedir a Lurdes Rata)?
    Abraço
    Rodrigo

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  5. A senhora de nariz empinado será a patroa?

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