16/11/13

Barba e Cabelo





Coloquei cuidadosamente a mola da roupa na virola da perneira direita, de forma a que a calça não roçasse na corrente impregnada de massa consistente, montei na velha bicicleta Ferrer com selim de molas e zarpei calmamente para a Garcia, onde o meu barbeiro privado e particular amigo Zé Florindo aguardava, com duas morcelas de arroz e um quartil de vinho para a merenda, a marcação de barba e cabelo feita via facebook na véspera. Modernices.
Os cumprimentos e a troca de galhardetes ainda duraram alguns minutos, porque a última tosquia já remontava a meados de Setembro, após o que nos dirigimos para a improvisada barbearia, um anexo em telha-vã onde Zé Florindo guarda habitualmente a lenha e algumas alfaias. Para além de uma boa provisão de pinho, pinhocas, caruma e dos artefactos agrícolas, alguns centenários, o cenário do mestre-escama era composto por um cadeirão de verga desengonçado, estrategicamente colocado em frente a um velho psiché com o espelho rachado, um lavatório em ferro fundido com bacia de esmalte e uma bilha de barro com água do poço. O cheiro a pinhal e a humidade misturavam-se e entranhavam-se nas narinas, que ainda demoraram uma boa dúzia de espirros e fungadelas a habituarem-se ao ar saturado.
Sentei-me no cadeirão de verga, que quase cedeu. Zé Florindo aconchegou uma toalha de turco ao meu colarinho e iniciou a função com a beata do cigarrito que lhe queima os pulmões dias a fio, preso no canto da boca. Vícios.
- Ouve lá, já te contei aquela dos tempos da guerra fria, duma corrida entre um atleta da América e outro da “Ursse”?
- Conta lá – respondi mirando-me ao espelho e tentando-me convencer de que as rugas profundas nos olhos e na testa, e os tufos de cabelos brancos que caiam sobre os ombros, eram apenas ilusão de óptica. Puro engano… - “nunca nos habituamos a ser velhos” – pensei cá para comigo.
- Um russo e um americano foram fazer uma corrida para tirar as teimas. Tá claro que o camarada russo ganhou. No dia seguinte na América os jornais diziam assim: “Atleta americano alcança brilhante segundo lugar e atleta russo fica em penúltimo”. Sacanas dos capitalistas!
Não pude conter uma gargalhada nem de recordar a primeira página do pasquim desta semana, que por mero acaso deu de caras comigo nas bombas da GALP, enquanto levantava dez euritos no multibanco para pagar a tosquia. Não fora um olhar mais atento e pensaria tratar-se de uma entrevista à doutora adjunta do alcaide, com direito a fotografia de dimensões consideráveis e ar circunspecto, reconhecendo na primeira pessoa estar a mais na câmara, o que estranhei. Mas não. Era uma parangona habilidosamente subtraída a uma entrevista cirurgicamente pensada pelo director encartado e generosamente concedida pelo comendador descartado. Animosidade, revanche, fel e maus fígados. Ou então, usando a formulação do próprio veneno – não conheço o suficiente acerca das capacidades dos senhores (director e comendador) para emitir uma opinião fundamentada. Contudo estou em crer que têm uma queda natural para actividades pirotécnicas pouco recomendáveis. Para além de trato pouco urbano e amistoso. Porque nisto do deve e do haver no “pagamento de fidelidades políticas, cumplicidades e compadrios”, uma mão lava a outra e as duas lavam os divertículos. Não há virgens nem vencedores.
Ficam todos em penúltimo.  

 

2 comentários:

  1. "Muito boa a sua opinião. Texto fenomenal. Uma clarividência digna de ser notada."

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  2. Fantástico texto mais uma vez.
    Quanto à matéria de facto, não me pronuncio, por uma questão de higiene, mas sempre lhe digo que, os três, são farinha do mesmo saco.
    Enquanto serviu ao sr. comendador, para lhe aprovar as obras ilegais e ilicenciáveis na Zona Industrial, em duas das suas fábricas, que depois vendeu com importantes mais valias que repousam em ofshores a chefe de gabinete era competentíssima, agora é descartável.
    Coisas da vida que justificam as expressões do tipo "a vingança serve-se fria". Disse.

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