27/11/13

A classe do argumentário



  
Extracto da acta nº 22, relativa à reunião ordinária da Câmara Municipal da Marinha Grande realizada no dia 25/10/2013, disponível no site da CMMG.

(…)
3 - DESPACHO N.º 285/GP/AP/2013 – DESIGNAÇÃO DO ADJUNTO DO GABINETE DE APOIO À PRESIDÊNCIA
Para os devidos efeitos, na sequência da instalação da Câmara Municipal da Marinha Grande para o quadriénio de 2013/2017 e na qualidade de Presidente, dou conhecimento ao digníssimo órgão executivo, que através do meu despacho n.º 285/GP/AP/2013, de 22 de outubro, designei para exercer as funções de adjunto do meu gabinete de apoio, o Senhor Amândio João Paula Fernandes.
(…)
O Sr. Vereador António Santos acrescentou que apesar de conhecer mal o nomeado [Sr. Amândio Fernandes], também achou que não terá o perfil adequado, uma vez que os tempos que aí vêm exigem pessoas com saber e saber fazer, e com um saber estar, o que lhe parece que não é o caso, pelo menos a julgar pelos debates durante a campanha eleitoral, questionando se pelo facto de ter a 4.ª classe terá competência para analisar os projectos QREN.


Confesso que quando li este extracto da acta de reunião de câmara em que o Sr. Presidente Dr. de Farmácia Álvaro Pereira, dava conhecimento à restante vereação de ter nomeado o Sr. 4ª Classe Amândio Fernandes para adjunto do seu gabinete de apoio, fiquei… confuso.
Tal como havia feito o Sr. Comendador Martins em entrevista ao jornal local, o Sr. Vereador Dr. de Direito António Santos, começa o seu argumentário com uma premissa no mínimo conflituante com a apreciação de falta de perfil que faz de seguida. Ora, se alguém não conhece bem outra pessoa, como pode fazer julgamentos de adequação de perfil e (pasme-se) de postura (“saber estar”)? Fácil, basta ter em devida conta os debates em que o visado terá participado na última campanha eleitoral e o seu pré-histórico grau de instrução escolar, para se perceber que, para além de vendedor de consultas à porta do Centro de Saúde, arrumador de carros ou simplesmente escriva de blogue anónimo, o sujeito não tem capacidade para o lugar. E muito menos para “analisar projectos do QREN” que, como é do domínio público, não é tarefa para qualquer cabecinha.
É contudo no mínimo estranho, que o Sr. Vereador Dr. de Direito António Santos não tenha invocado no seu argumentário, a eventual falta de currículo do nomeado, para a adequação à função.
Como também não conheço o senhor adjunto, nem o seu currículo nem tão pouco as funções inerentes ao cargo para o qual foi nomeado, impante de soberba decidi aprofundar a coisa. Ao melhor estilo de discípulo de Direito Administrativo da antiga 4ª Classe dos Adultos, socorri-me do Despacho n.º 164/2013 relativo ao Regulamento da Estrutura Orgânica Flexível da Câmara Municipal da Marinha Grande, publicado no Diário da República, 2.ª série - N.º 3 - 4 de janeiro de 2013, também disponível no site da CMMG:

SECÇÃO I
Dos gabinetes de apoio
Artigo 10.º
Gabinete de apoio pessoal ao presidente e vereadores
1 — O Gabinete de Apoio ao Presidente (GAP) e o Gabinete de Apoio aos Vereadores (GAV) são estruturas de apoio direto ao presidente da câmara e vereadores sendo constituídos nos termos do disposto nos artigos 73.º da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, alterada e republicada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro, na sua redação atual, aos quais compete prestar assessoria política, técnica e administrativa, designadamente:
a) Assessorar o presidente da câmara municipal na preparação da sua atuação política e administrativa, recolhendo e tratando a informação e os elementos relevantes;
b) Assegurar o apoio logístico e de secretariado, necessário ao adequado funcionamento da presidência e ao desempenho da actividade dos vereadores;
c) Elaborar as minutas das propostas para reunião da câmara municipal relativas a competências próprias do GAP e GAV;
d) Apoiar na realização do atendimento público destinado ao presidente e vereadores, nomeadamente na preparação de documentação de suporte, na solicitação de informação às demais unidades orgânicas da autarquia, no agendamento de entrevistas/reuniões e no controlo da execução das decisões tomadas;
e) Apoiar o relacionamento da autarquia com entidades externas, em articulação com as restantes unidades orgânicas, de acordo com a natureza da temática em causa;
f) Colaborar na elaboração dos documentos de gestão previsional e de prestação de contas, coordenando as ações de discussão pública e setorial que antecedem a sua submissão à deliberação dos órgãos municipais;
g) Coordenar a recolha e envio de informação sobre a atividade das unidades orgânicas, requerida nos termos da lei pelos órgãos municipais ou seus titulares, bem como por órgãos de soberania;
h) Coordenar a representação institucional da Câmara Municipal em eventos onde esta participe, responsabilizando-se, em articulação com as demais unidades orgânicas, pela atualização permanente da agenda dos eleitos;
i) Secretariar o presidente da câmara municipal e vereadores, organizar a sua agenda e marcar reuniões;
j) Prestar o apoio administrativo necessário.


Cingindo-me apenas e tão só àquilo que parece ser factual, definição de funções e habilitações académicas do nomeado, não vejo sinceramente qualquer incompatibilidade. Tanto mais que se percebe claramente que o que está em causa não é somente assessória técnica, mas também política, o que também implica confiança pessoal.
Que me faz muita confusão que alguém que há pouco tempo era dirigente de outra força partidária, agora seja nomeado para um cargo de confiança política de outra força diferente, lá isso faz. E muita! Pois na minha imodesta opinião quem atravessa uma metamorfose desta natureza deveria sempre respeitar um período de nojo.
Que, em abstracto, me faz muita confusão alguém aceitar ser nomeado para um cargo (muito mais público!) relativamente ao qual não tem competências para o desempenhar de forma eficiente e eficaz, lá isso faz. E muita! Pois na minha imodesta opinião o serviço público não se compadece com projectos de notoriedade pessoal, de poder e de vaidade. Ou não deveria…
Mas já quanto à argumentação do Sr. Vereador Dr. de Direito António Santos custa-me entendê-la e até aceitá-la, tendo em conta a sua postura, o seu currículo e a sua formação. Aliás, perdoe-me Dr. António Santos, como o senhor tão bem sabe, até prova em contrário todos somos “inocentes”. Mesmo aqueles que apenas com a 4ª são para nós uma referência e um exemplo de sabedoria, de humildade, de carácter e de competência. Não sei se em relação ao Sr. Amândio Fernandes é este o caso, pois não o conheço. Mas o senhor pelos vistos também não.

Aqui que ninguém nos ouve - não acha que o argumentário deveria ter sido outro, ou então ter aplicado o benefício da dúvida? 


26/11/13

Alvitre



Em dia de mais um protesto (absolutamente justificado e legítimo!), sugiro alguns apontamentos cronológicos sobre uma famosa Unidade de Saúde Familiar que nunca chegou a sair do papel.
Para memória futura.

23/6/2008
SAP - Ameaça ou Oportunidade?


18/2/2010
Marinha Grande: primeira USF criada até final do primeiro semestre


7/1/2010
Pergunta 786/XI/1
Assunto: Criação de USF no concelho da Marinha Grande


23/2/2010
Algumas notas sobre as Unidades de Saúde Familiar (USF’s)


26/6/2013
“Os deputados do Partido Socialista, Basílio Horta, João Paulo Pedrosa e Odete João, questionaram o Ministro da Saúde, Paulo Macedo, acerca do motivo de ainda não ter ocorrido a abertura da Unidade de Saúde Familiar no Centro de Saúde da Marinha Grande, abertura essa que há mais de dois anos está prevista.”


21/11/13

Sexo, mentiras e Pepsi


Virgolina, uma virgem batida de meia-idade, sentou-se e pediu uma Coca-Cola. O empregado, alto e loiro, questionou com ar trocista:
- Coca-Cola não temos. Pode ser Pepsi?
- Pode  – respondeu Virgolina olhando para o relógio, como se esperasse alguém.
O empregado colocou sobre a mesa a lata de refrigerante, um copo com uma rodela de limão e uma palhinha.
Virgolina encheu o copo, ignorou a palhinha e bebeu o conteúdo de um trago. As borbulhas gás precipitaram-se no estômago vazio, fazendo-a estremecer. Foi invadida interiormente por uma náusea momentânea. Sentiu o refluxo gasoso subindo vertiginosamente e soltou um vibrante e sonoro arroto, que pareceu prolongar-se por infindáveis segundos. Todos os olhares de reprovação e censura das mesas circundantes fixaram-se nela e Virgolina sentiu necessidade de se explicar e de tomar uma posição firme:
- Nunca bebam Pepsi! Esta bebida é horrível e fez-me arrotar sem querer. Que porcaria… por favor passem esta mensagem, que ninguém beba Pepsi! É importante que todos se unam e nunca mais bebam Pepsi!
- Com licença?! – advertiu uma sexagenária que comia uma torrada a duas mesas de distância.
- Perdão minha senhora. Com licença – retorquiu Virgolina envergonhada mas com uma pequena sensação de gozo, a de ter desferido uma estocada fatal no refrigerante inconveniente, que agora iria sentir nas vendas o resultado da sua indignação. Ela tinha a certeza que o movimento iria crescer e tornar-se imparável. Prova disso era a manifestação espontânea de apoio que acabava de testemunhar ao ver as pessoas quase mecanicamente e em simultâneo a erguerem o punho cerrado enquanto gritavam em uníssono – Pepsi nunca mais! Pepsi nunca mais! Pepsi nunca mais!
Alguns segundos depois chegava Coelho, um tipo execrável que habitualmente abusava dela. Pegou-lhe no braço com brusquidão e arrastou-a para a casa de banho contra a sua vontade. Subiu-lhe a saia e arrancou-lhe as cuecas, empurrando-a contra a parede fria. Virgolina implorou, usando o argumento recorrente:
- Não! Não! Por favor não, que eu sou virgem!…
Coelho respondeu indiferente:
- Pois que seja, vou-te sodomizar outra vez. Como habitualmente…
Pouco depois de Coelho ter abandonado a casa de banho com ar indiferente, Virgolina saíu do pequeno cubículo envergonhada, procurando algum sinal de compaixão nos rostos que momentos antes tinham reprovado o seu comportamento mas que depois lhe tinham dado a sua solidariedade. Porém, nem um olhar de complacência. A nota dominante era uma espécie de torpor colectivo e um estranho esforço de indiferença. Todos figiam não reparar no sucedido.
Virgolina sentiu vontade de gritar, de pedir ajuda para denunciar o abusador, de desmascará-lo, de o castigar, mas conteve dentro de si toda a raiva e humilhação. Afinal arrotar inadvertidamente em público era bem mais desconcertante do que ser sodomizada em segredo por Coelho. Pelo menos continuava virgem.
Sentou-se novamente à mesa e pediu uma 7UP. Sete, o número de Cristiano Ronaldo, o melhor do mundo. A ideia reconfortou-a, mesmo sabendo que o refrigerante que pedira era extremamente rico em gás.


16/11/13

Barba e Cabelo





Coloquei cuidadosamente a mola da roupa na virola da perneira direita, de forma a que a calça não roçasse na corrente impregnada de massa consistente, montei na velha bicicleta Ferrer com selim de molas e zarpei calmamente para a Garcia, onde o meu barbeiro privado e particular amigo Zé Florindo aguardava, com duas morcelas de arroz e um quartil de vinho para a merenda, a marcação de barba e cabelo feita via facebook na véspera. Modernices.
Os cumprimentos e a troca de galhardetes ainda duraram alguns minutos, porque a última tosquia já remontava a meados de Setembro, após o que nos dirigimos para a improvisada barbearia, um anexo em telha-vã onde Zé Florindo guarda habitualmente a lenha e algumas alfaias. Para além de uma boa provisão de pinho, pinhocas, caruma e dos artefactos agrícolas, alguns centenários, o cenário do mestre-escama era composto por um cadeirão de verga desengonçado, estrategicamente colocado em frente a um velho psiché com o espelho rachado, um lavatório em ferro fundido com bacia de esmalte e uma bilha de barro com água do poço. O cheiro a pinhal e a humidade misturavam-se e entranhavam-se nas narinas, que ainda demoraram uma boa dúzia de espirros e fungadelas a habituarem-se ao ar saturado.
Sentei-me no cadeirão de verga, que quase cedeu. Zé Florindo aconchegou uma toalha de turco ao meu colarinho e iniciou a função com a beata do cigarrito que lhe queima os pulmões dias a fio, preso no canto da boca. Vícios.
- Ouve lá, já te contei aquela dos tempos da guerra fria, duma corrida entre um atleta da América e outro da “Ursse”?
- Conta lá – respondi mirando-me ao espelho e tentando-me convencer de que as rugas profundas nos olhos e na testa, e os tufos de cabelos brancos que caiam sobre os ombros, eram apenas ilusão de óptica. Puro engano… - “nunca nos habituamos a ser velhos” – pensei cá para comigo.
- Um russo e um americano foram fazer uma corrida para tirar as teimas. Tá claro que o camarada russo ganhou. No dia seguinte na América os jornais diziam assim: “Atleta americano alcança brilhante segundo lugar e atleta russo fica em penúltimo”. Sacanas dos capitalistas!
Não pude conter uma gargalhada nem de recordar a primeira página do pasquim desta semana, que por mero acaso deu de caras comigo nas bombas da GALP, enquanto levantava dez euritos no multibanco para pagar a tosquia. Não fora um olhar mais atento e pensaria tratar-se de uma entrevista à doutora adjunta do alcaide, com direito a fotografia de dimensões consideráveis e ar circunspecto, reconhecendo na primeira pessoa estar a mais na câmara, o que estranhei. Mas não. Era uma parangona habilidosamente subtraída a uma entrevista cirurgicamente pensada pelo director encartado e generosamente concedida pelo comendador descartado. Animosidade, revanche, fel e maus fígados. Ou então, usando a formulação do próprio veneno – não conheço o suficiente acerca das capacidades dos senhores (director e comendador) para emitir uma opinião fundamentada. Contudo estou em crer que têm uma queda natural para actividades pirotécnicas pouco recomendáveis. Para além de trato pouco urbano e amistoso. Porque nisto do deve e do haver no “pagamento de fidelidades políticas, cumplicidades e compadrios”, uma mão lava a outra e as duas lavam os divertículos. Não há virgens nem vencedores.
Ficam todos em penúltimo.  

 

14/11/13

O anónimo das nove e qualquer coisa



O anónimo das nove e qualquer coisa não tem nome, não tem rosto, mas tem hora. Tem a hora em que decide, porque alguém lhe permite, escrever o que a vontade e os reflexos, mais ou menos condicionados, lhe ditam. A hora em que os neurotransmissores indicam às extremidades dos dedos em que caracteres carregar, transpondo para a escrita, mais ou menos complexa, mais ou menos frívola, mais ou menos temerária, mais ou menos encriptada, tudo o que seria suposto ou muito para além disso.
O anónimo das nove e qualquer coisa não tem nome, não tem rosto, mas existe. É uma escolha. Posso ser eu, podes ser tu, pode ser quem assim o entender – um qualquer cidadão, um político, um jornalista, um padre, uma puta, um zé-ninguém, um sicrano com enormes responsabilidades, um fulano com enorme poder, um manipulador ou, simplesmente, um palerma anónimo. O que faz a diferença para que na mesma comunidade se albergue gente tão diferente e de natureza e origem tão diversas, é o facto semi-irrefutável de que o anonimato funciona como um desinibidor de bloqueios, como uma forma de escapar ao crivo da censura social, aos tormentos de má consciência, à rotina dos dias, ao estigma das patologias aditivas, ou simplesmente porque se torna muito mais cómodo ser inconsequente e inimputável. Porque se torna muito mais cómodo criar personagens, alter egos - vilões, artistas, canalhas - ou simplesmente porque é muito mais cómodo distanciarmo-nos da fraqueza e da miséria humana. Transformarmo-nos de súbito em cidadãos altruístas, reflexivos ou numa bestas, não exige nada em especial, apenas ocultar o nome ou adoptar uma senha. Contudo, a volatilidade dos comportamentos e a ausência de medo e de pudor revelam um denominador comum que nos obriga a reflectir sobre a convivência com esta forma de manifestação, com este direito que não se basta a si próprio.
Mas o mais irónico, é que a condição do anónimo das nove e qualquer coisa é a mesma que assumimos quando estamos na cabine de voto, diante de um pedaço de papel com siglas, nomes ou rostos, confrontados com a nossa consciência e com a nossa responsabilidade.
Talvez seja isso que por vezes faz falta aos espaços virtuais em que o anónimo da nove e qualquer coisa e outros escrevem o que as suas vontades e os seus reflexos, mais ou menos condicionados, lhes ditam – consciência e responsabilidade. Pois que sem isso, não há cabine de voto que resista, não há paciência para conviver de forma indiferente com palermas.
 Eu anónimo me confesso.


13/11/13

Rotativa




Marinha Grande: PS atribui pelouros à CDU para garantir governação

Marinha Grande: Os vereadores da CDU vão assumir, entre outros, os pelouros da Educação, Acção Social e Turismo
Jornalista: 
Mário Pinto



 


Edição de: 
     

O PS da Marinha Grande chegou a acordo com a estrutura local da CDU para uma coligação política, como forma de garantir a maioria absoluta no executivo liderado pelo socialista Álvaro Pereira.
O acordo entre socialistas e comunistas surge mais de um mês depois da realização das Eleições Autárquicas do dia 29 de Setembro, no acto eleitoral em que os socialistas reconquistaram a presidência do município, mas sem maioria absoluta.
Com o compromisso de governabilidade, como referem os dois partidos, os dois vereadores da CDU, Vítor Pereira e Alexandra Dengucho, vão repartir a tutela, a tempo inteiro e a meio tempo, respectivamente, os pelouros da Acção Social, Educação, Desporto, Saúde, Juventude, Terceira Idade, Turismo e Geminações.
Com este entendimento, refere Aníbal Curto, mandatário da lista do PS à Câmara Municipal da Marinha Grande, a governação do município passará a ser feita “com estabilidade” entre os dois partidos mais votados nas eleições do passado dia 29 de Setembro.





11/11/13

São Martinho




Machete ajustou os óculos na ponta do nariz e folheou o Borda d’Água com a altivez dum néscio. Fixou os olhos esbugalhados no final da página dezoito, dedicada à sabedoria popular, e leu o ditado como se de um bordão se tratasse: no São Martinho vai à adega e prova o vinho.
Não foi de modas. Abeirou-se do pipo e, sôfrego, meteu queixos à torneira. O néctar correu livre e inundou-lhe o estômago, o fígado e o córtex cerebral.
Mais ao lado, Aníbal Silva e Pedro Coelho, com a boca atafulhada de castanhas queimadas e cada qual com o seu copo de água-pé, não perdiam pitada, rindo a bandeiras despregadas da figura do comparsa. “Este Machete é cá uma figura!…” – sussurrou Pedro a Aníbal piscando-lhe o olho toldado. Anibal aquiesceu mirando os sapatos coçados e rotos nas biqueiras.



01/11/13

Todos os Santos




Nos finais do século IX, para fazer pirraça ao triunvirato de serviço e para dar aos crentes e não crentes uma folgazinha há muito reclamada pelo Sindicato dos Decoradores de Sepulcros, Gregório IV, um papa que, tal como os seus três antecessores, regorjitava sempre que o limite de lácrima-crísti emborcado de penalty, excedia a capacidade instalada de destilação (fixada em dois almudes), decidiu proclamar que a festa de Todos os Santos se celebrasse invariavelmente no primeiro dia de Novembro, pelos séculos dos séculos.
A coisa foi andando, andando, até que uns séculos (e uns almudes de zurrapa) depois, um trio de jagunços carregados de notas de 5€, acabadas de imprimir na China, aterrou na Portela e soprou ao ouvido do serventuário que os tinha requisitado, não ser mais possível admitir tanto folguedo, tolerar tanta rambóia. Com o país à míngua, a carneirada tinha de ser imediatamente retirada do redil e tosquiada repetidamente, até espiar os pecados acumulados por viver acima do suposto. Gregório IV rodou 180º sobre si próprio dentro da tumba, ficando a baloiçar sobre a proeminente pança, entre o incrédulo e o escandalizado. Se o espaço o permitisse ter-se-ia benzido para esconjurar a blasfémia. Se o espaço fosse ventilado, teria regorgitado de nojo.
Ironia das ironias, quis o destino que fosse agendada para o primeiro 1 de Novembro roubado ao ócio, a votação do OGE para o ano da desgraça de 2014, obrigando governo e deputados, enfarpelados de bruxas e duendes com cabeça de abóbora, a esmolarem Pão por Deus ao povo do cimo das escadarias do mosteiro de São Bento da Vitória.
Lamentavelmente, ao contrário do que o papa Gregório estabeleceu, hoje não se celebrará o Dia de Todos os Santos. Hoje assistimos indignados, muitos de braços caídos e estomago vazio, à votação final do OGE, sem grande confiança no porvir e sem grande fé nos que do cimo das escadarias do Mosteiro de São Bento da Vitória festejam o halloween. Porque lamentavelmente não há santos para adorar. Porque todos, mas mesmo todos os que hoje votaram o orçamento, em maior ou menor grau, por acção ou omissão, são responsáveis pela nossa falta de esperança. Ou será que alguém acredita que estamos no bom caminho e que este é um orçamento de redenção?
Até quando vamos ser cúmplices desta tragédia semelhante à grega?

Até um dia destes...