Ontem de manhã a Lurdes Rata chegou cá a casa com um sorrisinho nos lábios, um esgar irónico de provocadora, e a fronha marcada – o olho direito apresentava um hematoma em tons de um exuberante azul-lilás, por certo, em resultado de mais uma das habituais investidas selváticas da cavalgadura a que chama marido e que por habito trata de forma patética e de uma meiguice quase obscena por, “o meu Tininho”.
“Então Lurdes, o que é que se passa? Parece que hoje acordaste bem disposta…” – atirei-lhe eu. “Bem feita! Bem feita!” – respondeu com ar vitorioso – “O Sócrates perdeu! É bem feita! Julgava que podia andar a mentir e a roubar a gente a torto e a direito, não pensava? Toma lá que já almoçaste!”.
Quase tocado pelo inusitado entusiasmo de uma mulher cujo avô foi torturado às mãos da PIDE e que sempre fez questão de anunciar que só votava “na foice e no martelo”, atirei-lhe o isco - “Não me digas que votaste no Cavaco?”. Olhou para mim com ar irado e disparou - “Eu quero é que o Cavaco e Silva se quilhe! Pus lá a cruz mas não foi para ele ganhar, foi p’ró Sócrates perder, esse bandido! Olhe que até a minha comadre Judite que é toda PS e que não falta a uma Quinta-Feira da Ascensão nas Árvores, votou naquele senhor que é médico dos pobrezinhos. Ela diz que não grama o Alegre desde que ele fez aquela malandrice de concorrer contra o Soares e isso não lhe perdoa. Olhe, isto é tudo a mesma quadrilha, um bando de vigaristas é o que é. Razão tem a minha filha e o namorado que nem puseram lá os pés para votar. Ficaram à lareira o dia todo a ver filmes e a fazer marmelada. Eu até já a avisei: Vânia Catarina, se queres estar na marmelada com o Mauro, ao menos vai para o teu quarto que cá em casa não quero poucas-vergonhas. Mas olhe que aquele da Madeira é que disse umas verdades, o que eu me ri com aquele malandro.”
Face à clarividência da análise produzida pela Lurdes Rata, na minha cabeça fez-se luz, afinal aqueles resultados que na véspera me pareciam inverosímeis, estapafúrdios, bizarros até, tinham afinal um motivo, uma explicação plausível, uma razão mediata - uma profunda descrença e irritação, e um preocupante alheamento, tudo traduzido no “voto contra”, um voto negativo, de censura, não a favor de algum candidato ou de algum projecto, mas simplesmente um voto de negação: um voto em Cavaco contra Sócrates, um voto em Alegre contra Cavaco, um voto em Nobre contra Alegre, um voto em Lopes porque é do contra, um voto em Coelho contra a racionalidade, um voto em branco (ou nulo) contra o status e até os abstencionistas, como habitualmente, votaram contra a democracia.
“Então e esse olho à Belenenses? Não me digas que o Tininho te foi outra vez às fuças?!”. Lurdes baixou os olhos num misto de vergonha e de embaraço, não conseguindo conter uma lágrima amarga. “Mas porque não deixas tu esse animal, mulher?” – perguntei-lhe revoltado. Retomando a compostura Lurdes Rata respondeu conformada – “Ele não me trata bem, não me dá alegrias nem me dá prazer. No fundo até tenho pena dele, porque se calhar ele nem é mau homem. E deste já sei eu o que espero. Já viu se a seguir me calhasse um pior?”. “Pior que o quê?” – questionei-a meio aparvalhado.