03/03/11

Concertação Doméstica



Como não há duas sem três, e como estamos no princípio do mês, (outra vez!), a Lurdes Rata encostou-me à parede: exigiu revisão salarial bem acima da taxa de inflação e melhores condições de trabalho – “sem farramenta decente, como é que eu hei-de dar rendimento a passar camisas? Olhe que até a mulher do meu vizinho Quim Chifrudo é mais quente do que esta bodega deste ferro, c’um carago!”.
Para ganhar tempo e para me recompor da reivindicação obscena, contrapus com negociação, concertação social e coisa e tal.
Face à minha irredutibilidade em pactuar de forma irresponsável com o aumento desmesurado da despesa, a azémola, que é fina que nem um alho e que não deixa que lhe façam o ninho nos entrefolhos, acenou-me com dois pares de camisas e com a esfregona – “Quer camisinhas passadas e o chão lavadinho, quer? Olhe, peça às desavergonhadas que costuma trazer cá p’ra casa, elas que lhe façam o servicinho completo! Ao menos que gemam a fazer alguma coisa decente!”
Fiquei varado! Senti-me humilhado! Embaraçado! Então aumentam-me a água, a luz, o pão e a gasosa, a reforma parece que encolhe a cada Orçamento de Estado e a porra da mulher-a-dias ainda me vem com ameaças e insultos? Mas quem é esta proletáriazeca para pôr em causa o capital que todos os meses, religiosamente, lhe paga por fora o arroz e o toucinho? – “Oiça lá, ó sua mal-agradecida, acha que lhe pago pouco, é?”. A troca de argumentos subiu de tom. “Pouco? Pouco? Você sabe lá o que é governar uma casa de família com menos de novecentos euros por mês?” – retorquiu Lurdes Rata. Quando ouvi a cifra, até os olhos me brilharam e a resposta não se fez esperar: “Ó minha senhora, ó minha senhora, calma lá, a senhora é uma privilegiada, é o que é. Sabe com quanto é que se governa a Sra. Dona Cavaco Silva? Com oitocentos euros, mulher, oitocentos euros por mês, ouviu bem?!... E arranja-se melhor que você, sua pindérica!”.
Lurdes ia para me responder à letra, mas conseguiu abafar a tempo um colérico “Vá p’ró car…”, semi-cerrando os dentes. A concertação não estava a resultar e Lurdes saiu porta fora fazendo-a fechar com estrondo.
Já mais a frio pus-me a matutar e facilmente concluí uma “La Palissada”: eu preciso da Lurdes e a Lurdes precisa de mim, isso é certo e sabido! Aliás, precisamos todos uns dos outros! Talvez por isso não fosse pior dispensar alguma racionalidade para compor coisa.
Ora, sabendo eu que o graveto não estica e que não estou minimamente interessado em “colocar dívida” nas mãos de agiotas, só me sobra uma solução a contento das partes: reduzo ao mínimo de subsistência nos vinhos, no fumeiro, nos charutos e nas viagens, compro uma porra dum ferro de engomar xpto, proponho à Lurdes que faça menos horas sem lhe baixar a avença, e se no fim do ano as poupanças o permitirem e a Lurdes tiver cumprido, ainda leva uma prenda generosa.
Mas a Lurdes vai ter que me prometer três coisas: que não vê a Júlia Pinheiro enquanto passa as camisas a ferro, que não fica na palheta com a vizinha enquanto estende a roupa no arame e que vai ler as instruções do ferro novo antes de lhe dar uso, bom uso.
Vou já marcar uma nova ronda negocial.

9 comentários:

  1. Excelente narrativa com muitos laivos de boa disposição e ao mesmo tempo uma sátira aos aumentos que o governos nos propõe....

    Não há dúvida que essa coisa de reduzir a horas e pagar o mesmo corresponde a um aumento de trabalho feito em menos dias.

    O prémio final é apenas uma miragem para calar os mais atrevidos.

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  2. Mais uma vez um texto bem elucidativo dos tempos que correm.

    Já agora porque é que só depois da Ratazana (ou será Ratinha ?) ter gemido é que reflectiu que podia fazer algo de util ?

    E a dita cuja será que vai entender a sua explicação. Se for como os outros que por aí andam, bem pode tirar o cavalinho da chuva. Já o estou a ver de esfregona na mão e rabo pró ar.

    Será que o amigo Relaxoterapeuta descobriu o significado de aumento de produtividade ?!?!?

    Passem já esta informação em todos os noticiários nacionais.

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  3. Como sempre, não ficaram defraudadas as expectativas.
    O texto é excelente, mas o que eu espero é que as suas negociações façam jurisprudência para ir de fininho aplicar a receita lá em casa. Olhe, não se pode readmitir como estagiária? Pensando melhor, como a sua Lurdes Rata é um bocado destravada, aguardo uns dias pelo resultado da concertação, antes que perca pau e bola.
    Bom Entrudo.

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  4. Caro amigo
    Deixe que o trate assim, mesmo não o conhecendo.
    O que mais me fascina e até me deixa frustrado, é a sua capacidade de, em meia dúzia de linhas, conseguir por-nos a pensar, mesmo através da sátira, sobre problemas da nossa vida colectiva e episódios burlescos como o da Dª. Maria de Boliqueime.
    Conceitos como "negociação e concertação", interdependência de todos os interesses envolvidos, cedências com contrapartidas, recusa da "ajuda" dos agiotas, etc., mesmo a rir, colocam-nos no centro do drama porque quase todos estamos a passar. E digo "quase todos", porque há alguns que se empanturram com a desgraça alheia, como os Bancos, as seguradoras, as gasolineiras, as grandes cadeias de super mercados, a EDP, a PT e afins, etc.
    Cá pelos meus lados, em vez da Lurdes Rata tenho um banqueiro chamado Ulrich (que nome estranho), que não faz a mínima ideia do que é negociar e nunca deve ter ouvido falar do conceito de que todos dependemos de todos e de cada um.
    Já me esfalfei a pensar e a propor contrapopostas, mas o homem é irredutível.
    Não há dinheiro para apoiar pequenas empresas, porque estão a comprar dívida soberana a mais de 7% com o dinheiro que vão pedir ao BCE a uma taxa muito mais baixa.
    Cada um tem a Lurdes Rata que merece. A mim calhou-me este, que fala bem na TV, mas não me anima.
    Sorte para si, na próxima ronda negocial, já que para mim e milhares como eu, a sorte é palavra que não se pronuncia.

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  5. Caro Relaxoterapeuta
    Não direi mais que apoiar e subscrever o comentário do anónimo anterior.
    Curiosamente até parece que foi escrito por um amigo com quem hoje de manhã troquei umas impressões sobre esta capacidade em que o meu caro é eximío.
    permita-me enviar-lhe um abraço.

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  6. Pois...
    O Folha Seca parece que é bruxo.

    Um abraço caro amigo.

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  7. não me fecundem sffmarço 07, 2011

    Necessita editor...urgente sff.

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  8. Flor do Lizmarço 08, 2011

    Boa tarde,

    Pelo menos, que estes excelentes textos, fossem publicados no Jornal local.

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  9. No jornal local, Flor do Liz? Tem a certeza?
    Em minha opinião isso seria um enorme desprestígio para os textos com que o Relaxoterapeuta nos vai brindando...
    A propósito, deixo os parabéns por mais este naco de prosa bem humorado, certeiro e actual.

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