Com a delicadeza habitual, Lurdes Rata passou
propositadamente com a esfregona impregnada de água e detergente por cima dos
meus pés, deixando sapatos e calças molhados e um rasto a lavanda e lixívia.
- Levante lá as patinhas se faz favor que eu quero lavar o
chão.
- Porra Lurdes, já não se pode ler sossegado nesta casa?
- Cale-se bem caladinho que a mim paga-me é para trabalhar.
Tenho de me despachar que é quase meio-dia e tenho de ir dar o almoço aos
garotos. E o que é que o varrão está a ler tão entretido? Deve ser de gajas
nuas e poucas vergonhas, não é?
Ignorei a afronta e respondi ajeitando os óculos na ponta do
nariz:
- Estou a reler o Sermão de Santo António aos Peixes, do
António Vieira.
- Ah, o gajo do Benfica. Estes homens só vêem bola à frente,
chiça.
- Padre António Vieira, santa ignorância.
- Ah ele agora é padre? Pois o do Porto é papa.
- Enfim, é o país que temos… - respondi enfastiado.
- Oiça cá, está para aí com merdas, o que é que esse Vieira
diz a mais do que eu?
- Queres mesmo que te leia um bocadinho para perceberes a
diferença entre um pensador do século XVII e uma mulher a dias do século XXI,
queres? – respondi irritado.
Lurdes Rata empertigou-se e apoiando as mãos e o
queixo no cabo da esfregona tomou pose ouvinte atento.
- Sou toda ouvidos, senhor doutor da mula russa.
Coloquei a voz e comecei a leitura, imaginando-me também a
pregar aos peixes.
- Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda
maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os
pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os
grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os
pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como
estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus
facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas
cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia
cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no
mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos,
vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a
fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes,
para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Aproveitando a minha pausa para respirar, Lurdes Rata interrompeu a leitura levantando a mão direita
acima do ombro.
- Alto e para o baile! P’ra mim tá bom! P’ra mim tá bom! Chega de converseta lá do século não sei quantos. Vá-se lá quilhar mais esse
Vieira e os peixes que eu tenho muito que fazer.
- Não percebeste patavina, pois não Lurdes?
- E era para perceber?
uuuuu dvd obdc OOOOO.(*)
ResponderEliminar(*) Confundido no acordo ortográfico, que até para um alemão é difícil, interessa a essência. Mensagem do Schäuble ao Passos em Lusofonês de Massamá: Os pequenos deve de obedecê ós grandes.
Cumprimentos, desculpe a graçola do meu tempo de menino.
Pois...
ResponderEliminarNão há palavras.
Encaixar a Lurdes Rata num trecho do sermão de S. António aos Peixes, ao mesmo tempo que se viaja no tempo, é fenomenal.
Até quando é que o sermão vai continuar actual.