O dia amanheceu fresco e com uma borrasca
molha-tolos que desaconselhava a habitual caminhada.
Mesmo assim ignorei os avisos da
mãe natureza e iniciei o percurso habitual – Casal da Fomiga, Luzeirão, Parque
da Cerca, Parque Mártires do Colonialismo, Praça Stephens e regresso ao Casal
da Formiga via Rua Marquês de Pombal, em tempos uma importante artéria que hoje não passa
de uma variz em estado pré-ulceroso.
Os primeiros três quartos da
viagem correram sem qualquer sobressalto de maior. Na rua o movimento ainda era
reduzido e a cidade acordava lentamente de mais um longo dia de comemorações
que começara como habitualmente na noite de 24 para 25 – bombos, cantigas de
Abril, poemas e papagaios, nas varandas, pois que o vento não estava de feição para
ensaiar qualquer ascensão aos céus.
Passei em frente aos Bombeiros e
caminhei junto ao tapume das obras da Resinagem, procurando ignorar o
mastodonte que agora se ergue nas cavalitas do novo Cinema Paraíso, apenas
desejando que o bom senso ao menos lhe reserve uma utilização digna e
criteriosa. Enfim…
Chegado à Praça Stephens virei à
direita em direcção à Marquês de Pombal e dei de caras com uma fotografia de
grandes dimensões do Comendador Martins, nas instalações da antiga papelaria do
primo. “Foscasse piguga!” – pensei eu, não contendo uma pequena gargalhada em
resultado de tão inesperada aparição. Não é que não faça sentido a presença do
comendador na praça do município, já que a sua influência sempre foi notória em
certos círculos mais iluminados dos Passos do Concelho, e a sua presença era vulgar
em saraus culturais e recreativos que se desenrolavam no clube do outro lado da
rua. O que me despertou os sentidos foi o sorriso irónico e desafiador do seu
olhar e o esgar de notório revanchismo que se lia nos seus lábios. Por segundos
imaginei o Presidente Pereira a entrar e a sair do escritório que por enquanto
vai ocupando, evitando um encontro de olhares com o retrato do comendador,
preferido perscrutar o céu em busca de papagaios de cores vivas e dimensões
variadas, enquanto se afasta apressadamente da antiga papelaria.
O Comendador Martins não é nenhum
fantasma que paira sobre a Praça Stephens, é um pesadelo que ecoa no sótão
escuro e húmido da vivenda rosa da Rua 25 de Abril, atormentando o soninho
descansado dos nefelibatas residentes que pensavam que eram tudo favas
contadas. Enganaram-se outra vez, porque a política também tem destas coisas
que normalmente se servem como as saladas, frias…