26/04/13

O papão

 
O dia amanheceu fresco e com uma borrasca molha-tolos que desaconselhava a habitual caminhada.
Mesmo assim ignorei os avisos da mãe natureza e iniciei o percurso habitual – Casal da Fomiga, Luzeirão, Parque da Cerca, Parque Mártires do Colonialismo, Praça Stephens e regresso ao Casal da Formiga via Rua Marquês de Pombal, em tempos uma importante artéria que hoje não passa de uma variz em estado pré-ulceroso.
Os primeiros três quartos da viagem correram sem qualquer sobressalto de maior. Na rua o movimento ainda era reduzido e a cidade acordava lentamente de mais um longo dia de comemorações que começara como habitualmente na noite de 24 para 25 – bombos, cantigas de Abril, poemas e papagaios, nas varandas, pois que o vento não estava de feição para ensaiar qualquer ascensão aos céus.
Passei em frente aos Bombeiros e caminhei junto ao tapume das obras da Resinagem, procurando ignorar o mastodonte que agora se ergue nas cavalitas do novo Cinema Paraíso, apenas desejando que o bom senso ao menos lhe reserve uma utilização digna e criteriosa. Enfim…
Chegado à Praça Stephens virei à direita em direcção à Marquês de Pombal e dei de caras com uma fotografia de grandes dimensões do Comendador Martins, nas instalações da antiga papelaria do primo. “Foscasse piguga!” – pensei eu, não contendo uma pequena gargalhada em resultado de tão inesperada aparição. Não é que não faça sentido a presença do comendador na praça do município, já que a sua influência sempre foi notória em certos círculos mais iluminados dos Passos do Concelho, e a sua presença era vulgar em saraus culturais e recreativos que se desenrolavam no clube do outro lado da rua. O que me despertou os sentidos foi o sorriso irónico e desafiador do seu olhar e o esgar de notório revanchismo que se lia nos seus lábios. Por segundos imaginei o Presidente Pereira a entrar e a sair do escritório que por enquanto vai ocupando, evitando um encontro de olhares com o retrato do comendador, preferido perscrutar o céu em busca de papagaios de cores vivas e dimensões variadas, enquanto se afasta apressadamente da antiga papelaria.
O Comendador Martins não é nenhum fantasma que paira sobre a Praça Stephens, é um pesadelo que ecoa no sótão escuro e húmido da vivenda rosa da Rua 25 de Abril, atormentando o soninho descansado dos nefelibatas residentes que pensavam que eram tudo favas contadas. Enganaram-se outra vez, porque a política também tem destas coisas que normalmente se servem como as saladas, frias…
 

24/04/13

Santo e Senha

 
Na vertigem dos problemas e das contrariedades, tendemos a esquecer as reais diferenças entre o antes e o depois, entre a mordaça da ditadura e a puberdade da democracia. Desenganem-se os vendedores de banha da cobra, os falsos profetas da antipolítica, os toxico-independentes e os degenerados da cidadania dos direitos, Portugal não é o mesmo de há 38 anos atrás e ponto final!
Temos muitos problemas para resolver? Sem dúvida! Abril é um projecto inacabado? Absolutamente! O sistema democrático necessita de se regenerar? Urgentemente! A classe política é fraca? Muito. E ainda assim preferimos a democracia? SEMPRE! E os partidos? Obviamente. Mas ser cidadão é apenas votar e manifestar vontades e críticas? NÃO! Ser cidadão é ter palavra, escolha, participar na construção da democracia, dar cara e tempo às associações, aos clubes, aos grupos de intervenção, aos partidos, aos outros. Ser cidadão é escolher um caminho consciente e trilhá-lo. É não ter razões absolutas, é acreditar que é possível resolver os problemas, é ter bom senso, é credibilizar e acreditar no Estado, é aceitar a vontade da maioria, é respeitar as minorias, é ser solidário, é não ser nada para se ser tudo.
E é por isso que devemos denunciar o falso medo, a falsa crítica, os falsos caçadores de fantasmas, os falsos independentes, os falsos detentores da verdade, os bufos, os hipócritas, os merdosos que se escondem nos blogues e nas redes sociais para golpearem a democracia sob o diáfano manto do puritanismo populista, sob a falsa capa de um contrapoder sem regras. Pois não há pior cancro para a democracia do que o poder político se deixar manietar e submeter mansamente pelo escrutínio dos que sem rosto chafurdam na lama que eles próprios proclamam combater, mas cujo caudal todos os dias engrossam. Dar importância a quem não a tem ou credibilidade a quem não a merece, é desprezar a legitimidade democrática e subalternizar e descaracterizar as instituições, um caminho perigoso e sem retorno.
Celebrar Abril é por isso respeitar a liberdade usando-a com o critério e a consciência que se empresta todos os dias a uma delicada flor que se cuida e que se ama.
VIVA A LIBERDADE!
 

19/04/13

A má moeda (remaque)

.
.
Esta semana Pedro Manuel Mamede Passos Coelho e António José Martins Seguro arrulharam em S. Bento, sem contudo terem acasalado. Pelo menos que se saiba. O encontro ficou-se pelos preliminares, tendo em vista uma posterior sessão terapêutica de ménage a quatro com a troika, a qual se pretendia fluída e lubrificada.
Horas mais tarde, de viva voz e evidenciado profundos traços de insatisfação sulcados na face pálida e enrugada, trabalho digno de um vencedor do Óscar para a melhor caracterização, António José veio comunicar em tom monocórdico e sumido que não havia novidade e que a quadrilha (Pedro + troika) tinha desiludido. Desta vez nem para simular o clímax a coisa tinha dado.
Lembrei-me então do artigo que o Sr. Silva escreveu em 2004, quando a propósito do outro Pedro, o Miguel de Santana Lopes, estabeleceu um paralelo entre a Lei de Gresham e a expulsão de bons políticos por maus políticos, verdade insofismável da qual o próprio Silva é corolário.
Mas não me lembrei da má moeda apenas pela fraquíssima qualidade dos actuais intervenientes, lembrei-me da má moeda porque Pedro Manuel Mamede Passos Coelho e António José Martins Seguro ensaiaram esta semana, para português ver, a entrada de uma nova moeda em cujo valor facial nem eles próprios acreditam, apesar do cunho ter nela gravado as suas próprias efígies, uma em cada face. Pedro e António que se encontraram para supostamente estabelecerem pontos de convergência, nos quais não acreditam, são as cara e coroa duma mesma moeda que garante (e garantirá) à troika, presencialmente ou através de carta de conforto, que a carneirada continuará a suportar taxas internas de rentabilidade de 10% às PPP’s e juros de usura aos mercados, enquanto a "via dos impostos" passa a ser substituída sub-repticiamente pela "via da redução da despesa", forma manhosa e capciosa de cortar naquilo que são as mais nobres funções do Estado – a saúde, a educação e a segurança social, obrigando de novo os mesmos a pagarem.
Reconheço, em abono da verdade, que Pedro e António são ideologicamente diferentes. Contudo, não estando nenhum deles crente num entendimento político a curto prazo, e estando liminarmente afastada qualquer possibilidade de prazer na relação, porque será que se prestam a estes encontros inconsequentes? É que se for só para marcar na agenda que se reuniram, mais valia irem ao cinema ou a um baile e aí sim, talvez até pintasse um clima entre os dois. Quem sabe…

16/04/13

Maleitas

O
- Então doutor, acha que é grave?
- O senhor tem estado em contacto com relvas?
- Porquê doutor?
- É que o senhor está com a doença da moda: falta de força anímica.
- E tem cura?
- Há paliativos, um conselho de administração de uma grande empresa, daquelas que têm muitos negócios com o Estado.
- Mas cura mesmo, não há?
- Há, mas é um processo muito doloroso.
- Intervenção cirúrgica?
- Não. Repetir a quarta classe dos adultos e tirar o “Dr” dos cheques antes do nome do titular da conta.
- Foscasse, mas isso é desumano doutor!
- Senhor Relaxoterapeuta, eu disse que o processo era muito doloroso.
- Então por favor prescreva-me um paliativo.
- Ok. Também precisa de vaselina? É que já está a decorrer a entrega do IRS…
- Ainda tenho alguma. Comprei uma lata de cinco quilos quando assinaram o memorando com a troika.

 

04/04/13

Dia-lugar

 
Com a delicadeza habitual, Lurdes Rata passou propositadamente com a esfregona impregnada de água e detergente por cima dos meus pés, deixando sapatos e calças molhados e um rasto a lavanda e lixívia.
- Levante lá as patinhas se faz favor que eu quero lavar o chão.
- Porra Lurdes, já não se pode ler sossegado nesta casa?
- Cale-se bem caladinho que a mim paga-me é para trabalhar. Tenho de me despachar que é quase meio-dia e tenho de ir dar o almoço aos garotos. E o que é que o varrão está a ler tão entretido? Deve ser de gajas nuas e poucas vergonhas, não é?
Ignorei a afronta e respondi ajeitando os óculos na ponta do nariz:
- Estou a reler o Sermão de Santo António aos Peixes, do António Vieira.
- Ah, o gajo do Benfica. Estes homens só vêem bola à frente, chiça.
- Padre António Vieira, santa ignorância.
- Ah ele agora é padre? Pois o do Porto é papa.
- Enfim, é o país que temos… - respondi enfastiado.
- Oiça cá, está para aí com merdas, o que é que esse Vieira diz a mais do que eu?
- Queres mesmo que te leia um bocadinho para perceberes a diferença entre um pensador do século XVII e uma mulher a dias do século XXI, queres? – respondi irritado.
Lurdes Rata empertigou-se e apoiando as mãos e o queixo no cabo da esfregona tomou pose ouvinte atento.
- Sou toda ouvidos, senhor doutor da mula russa.
Coloquei a voz e comecei a leitura, imaginando-me também a pregar aos peixes.
- Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Aproveitando a minha pausa para respirar, Lurdes Rata interrompeu a leitura levantando a mão direita acima do ombro.
- Alto e para o baile! P’ra mim tá bom! P’ra mim tá bom! Chega de converseta lá do século não sei quantos. Vá-se lá quilhar mais esse Vieira e os peixes que eu tenho muito que fazer.
- Não percebeste patavina, pois não Lurdes?
- E era para perceber?