Casal da Formiga, vinte e nove de
Dezembro de 2012.
Cinco minutos antes da hora
marcada para o jantar, ouvi um grito descendo a chaminé seguido de um estrondo
na lareira. Por entre uma nuvem de cinza e fuligem, a voz rouca de um ancião, entrecortada
por uma tosse irritante provocada pelas partículas em suspensão, vociferava
alguns impropérios – “Foscasse! C’um caraifo! Eu já não tenho idade p’ra estas
m.... caraifos!”
Tentei afastar a poeirada agitando os braços com
gestos largos e estendi a mão na direcção do Pai Natal. Ignorando o meu gesto
levantou-se a custo e tentou compor a farpela e a aparência, ajustando o cinto
à proeminente barriga e passando as mãos pelo fato amarrotado e pela barba em
desalinho. Curiosamente, o barrete intacto e imaculado continuava no seu sítio,
bem fixo à cabeça grande e redonda, deixando cair grossos caracóis de cabelo grizalho que
emolduravam uma cara patusca e rosada.
- Obrigado por ter acedido ao meu
convite para jantar, Pai Natal – disse-lhe eu em jeito de boas-vindas.
- De nada meu rapaz, é um prazer.
Sentámo-nos à mesa e começámos a
depenicar pequenos pedaços de queijo e de presunto que a Lurdes Rata tinha
cortado com a delicadeza de um lenhador. Servi-lhe um tinto alentejano e
indique-lhe o cesto do pão.
- Diz lá meu rapaz, o que
pretendes de mim? Não te esqueças que o orçamento está curto…
Franzi o sobrolho e atirei a
matar, há muito que ninguém me tratava por “meu rapaz”.
- Em primeiro lugar quero que
fique bem claro que não acredito em si! Não é de agora…
O Pai Natal engoliu uma côdea e
tossicou. Levou o vinho aos lábios parecendo querer ganhar tempo para
responder.
- Então por que é que me
convidaste para jantar?
- Convidei-o porque sei que se
sente só após a azáfama do Natal. Todos se lembram de si até dia 25, a partir
daí é mais um velho para as estatísticas.
- Convidaste-me então por
caridade…
Deixei escapar um sorriso maroto.
- Não se preocupe que não ponho
fotografias do nosso jantar no facebook.
- Agradeço a tua sinceridade mas,
se não acreditas em mim como é que poderemos ter um jantar agradável? Vamos
permanecer calados?
Terminei um pedaço de queijo,
limpei os lábios ao guardanapo e voltei a encher os copos, retomando o
diálogo.
- O facto de não acreditar em si
não quer dizer que não o estime. Sei que ainda faz muita gente feliz e por isso
merece toda a minha consideração. Porém, outros há em quem não consigo
acreditar, não lhes reservando qualquer estima.
Desta vez foi o Pai Natal a fazer
um sorriso maroto.
- Referes-te ao Passos Coelho e à
pandilha? Para que conste, esse tal Gaspar chegou a trabalhar para mim como
duende. Era um bocado aldrabão... conheço-o muito bem!…
- Refiro-me a todos os vendedores
de ilusões que nos fazem infelizes e descrentes. Há micro-deuses por todo o
lado. Nem a minha cidade escapa.
- Enganar faz parte da natureza
humana. Nunca enganaste ninguém?
Fiz um ar surpreendido,
procurando bem no fundo da minha consciência semelhante culpa.
- Alguns maridos talvez -
respondi com a inocência do miúdo que foi apanhado a ir ao frasco dos
rebuçados – mas o meu problema não são essas pequenas bagatelas – retomei - o
meu problema são outros, o futuro, a dignidade das pessoas, a confiança, a esperança,
a felicidade. Tudo isso nos está a ser roubado por gente incompetente que nos
engana de forma descarada. Vejo a mediocridade e a incompetência serem
premiadas e os mais capazes a serem despejados borda fora. Vejo muitos idiotas
cheios de ideias. Estou farto! Farto!
O Pai Natal passou os dedos
compridos pela barba manchada de fuligem e retorquiu com os olhos semi-cerrados
- mas tu acreditas que é possível viver num mundo em que as pessoas se
preocupem mais com os outros do que com elas próprias? Que ponham o bem comum
acima do bem individual? Que olhem para as suas capacidades como forma de ajudar
os outros? Em que os mais capazes sejam os líderes?
- Acredito, porquê?
- Ho, ho, ho! Então deixa-me
que te diga uma coisa meu rapaz, tu ainda acreditas no Pai Natal!… Ho, ho , ho!
Fixei os olhos no prato e não fui
capaz de replicar. A crueldade das palavras do Pai Natal abateram-se sobre mim
como um cutelo. Inadvertidamente tinha dado a última machadada na réstia de
ingenuidade que ainda havia no “rapaz” de cabelos grisalhos com quem partilhava
a refeição, e ele sentia-o. “A verdade é tanto mais cruel quanto maior a nossa consciência
da realidade” – pensei.
Concluímos a refeição sem
voltarmos a abrir a boca. Despedimo-nos.
Temendo novo embaraço, insisti para
que saísse pela porta da frente. Anuiu. Levou os dedos à boca e assobiou. Volvidos
poucos segundos três pares de renas puxando um trenó topo de gama estacionaram
em frente ao portão pequeno. Acenou-me pela última vez e despareceu na noite do
Casal da Formiga.
Voltei para dentro e rememorei a
canção do Zé Mário Branco:
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda
Tomei os hipnóticos do sono e deitei-me.
Dormi que nem um anjo. Sonhei toda a noite com guloseimas, chupa-chupas,
rebuçados, chocolates, brincadeiras de criança. E com gajas.
Parece que o relaxado está a ficar esquizofrénico.
ResponderEliminarSempre achei os textos do Relaxoterapeuta muito pretenciosos, em termos da linguagem que utiliza, mas muito pobres e vagos de ideias. A prova-lo estäo o reduzido número de comentários e de visitas. Penso que se devia focar mais em questões concretas em vez de contar histórias da carochinha.
ResponderEliminarMeu caro
ResponderEliminarOs Cães ladram...
De facto até eu gostava de escrever assim, mas limito-me a fazer o que sei, sem ponta de inveja, mas com grande admiração.
Não se deixe incomodar por ignorantes e provocadores.
Abraço
Rodrigo
E quem não gostava de escrever assim?
ResponderEliminarBom ano e continue a escrever para quem o aprecia.
No fundo, quem nunca alternou o sonho com a inquietação? Quantos dos que realmente o lêem não se sentirão retratados?
ResponderEliminarApesar de tardios, aqui deixo os meus votos de que 2013, afinal, nos possa faça fazer sonhar. E já agora, que nos traga mais dos textos a que nos está a habituar.
Cumprimentos.