Desde que fiz da rua, casa, após
ter sido abandonado à minha sorte ainda muito jovem, que acordo invariavelmente
com a mesma sensação de estomago vazio. É por isso que, há já um ror de anos -
não sei precisar quantos - cumpro religiosamente o mesmo ritual ao dealbar do
dia, quando os primeiros raios da manhã fundem o cizento-negro da noite, procuro
no contentor mais próximo qualquer coisa para me matar a fome e para serenar os
músculos rígidos e retesados do frio e da geada da noite.
Mas os tempos não estão fáceis.
Até no lixo se nota que o país enfrenta uma grave crise. Encontrar côdeas de
pão, ossos ou restos de comida é cada vez mais raro e mais disputado.
Tenho um amigo que diz gostar de
ver as traseiras das casas e dos prédios, pois dessa forma compreende melhor
como as pessoas são e como vivem. É um ponto de vista interessante. Apenas
acrescentaria que no lixo também se percebe como as pessoas enfrentam o
dia-a-dia. Em tempos de fartura o desperdício é uma coisa que vocês não
imaginam.
Viver na rua não é fácil. Os
olhos remelosos e o aspecto sujo e desleixado não abonam em meu favor e por
isso, não raras vezes sou corrido pelo meu aspecto. Eu sei que nos dias de hoje
a imagem é extremamente importante. Fundamental, até. Mas será que alguém já se
questionou que, não tendo eu pedido para nascer, sou à partida prejudicado pelo
que não tenho nem aparento? Mas, mais profundo. E será que alguém já se
questionou se por detrás deste aspecto miserável não poderão existir atributos
tão raros nos dias que correm como, a doçura, a cumplicidade, a lealdade?
Eu sei que pode parecer estranho alguém
na minha condição ter este tipo de devaneios introspectivos. Distúrbios. Nada mais
errado. São apenas pensamentos que fluem como flui o sangue, os dias ou até
mesmo a fantasia.
Não tenho muitos amigos. Amigos
mesmo – quero eu dizer. Uns dois ou três, talvez. Mas tenho um especial. É
muito mais velho do que eu e diz que nunca trocaria a rua, a sua liberdade, pelo
conforto de uma “prisão”. E eu, só para o picar, costumo perguntar-lhe – de que
te serve a tua liberdade se tens fome, se passas frio, se és escorraçado por
viveres na rua?- e ele, cioso dos seus princípios, costuma olhar-me com aquele
ar superior de quem já passou muito na vida e responde – de que serve não teres fome, nem frio e tudo
o resto, se não tiveres liberdade?
Mas do que eu gosto mesmo é ir
ver os velhos jogar às cartas nos bancos de pedra do jardim. Às vezes até me
chego a eles. Nunca me maltrataram. A vida ensinou-lhes muito…
Inimigos? Tenho um! Pelo menos.
Chama-se Gaspar e gosta de gozar comigo. Corre que se farta e nunca o consegui
apanhar. Diz que tem sete vidas e talvez por isso pense que a forma desleixada
como vive e age não tem consequências. Talvez um dia tenha azar.
Bom, agora vou ter de me ir
embora. Vem aí o parvalhão Chico-Zé, um puto mimado e tolo que se costuma
divertir a correr-me à pedrada. Um dia hei-de apanhá-lo desprevenido e
mordo-lhe as canelas. Não me chame eu Faísca!...
Ser cão não é nada fácil. Vocês
me dirão.