26/03/14

Limpinho, limpinho!




- Quem vem lá faz alto! – berrou inseguro o 2º cabo, segurando desajeitadamente a G3 nas mãos trémulas e apontando-a sem grande convicção em todas as direcções.
A noite, escura como breu, não deixava enxergar um palmo à frente do nariz. O silêncio, apenas entrecortado pelos pios das aves nocturnas, que mais se assemelhavam a gritos lancinantes de almas depenadas pela maldita crise, tinha-lhe permitido identificar no sonar do instinto de sobrevivência o ruído de passos furtivos na sua direcção. A brilhante moleirinha do 2º cabo Seguro recordava agora a utilidade de todos os ensinamentos que recebera durante a recruta Jota - “Se o cabrão se aproximar de ti e não disser a senha, espeta-lhe um tiro nos cornos! Há divergências que são insanáveis e só a morte é irrevogável(1). Nunca te esqueças que a hesitação é a morte do artista e um gajo tem de se mostrar sempre confiante!”.
Do outro lado uma voz folgazona cantarolou com timbre de barítono:
- Calma pá, sou eu, o 1º cabo Passos, pá!
- A senha! – gritou o 2º cabo, à beira dum ataque de nervos – Se dás mais um passo nos cornos espeto-te um tiro no cabrão!
A tensão condicionava-lhe o raciocínio e a fórmula de guerra, repetida vezes sem conta pelos instrutores do aparelho, saia-lhe da boca de forma desordenada. Do outro lado ouviram-se risinhos.
Os segundos que se seguiram pareceram-lhe uma eternidade. Porventura teria coragem para disparar?
Após alguma hesitação, do outro lado do breu o 1º cabo Passos, que se fazia acompanhar pelo sargento-mor Silva, voltou a tentar quebrar o gelo:
- Eh pá, baixa lá a bazuca a que gente só quer dar dois dedos de conversa, pá.
Como um autómato o 2º cabo Seguro ripostou com a firmeza dum guerreiro pigmeu:
- Repito, senão dizes a senha espeto-te uns cornos no tiro do cabrão!
Do outro lado nova risada.
- É pá, a senha é… a senha é… é… hi, hi, hi…
Pressentido que a coisa podia descambar e que ambos podiam explodir de riso a qualquer momento, o sargento-mor puxou dos galões baços de sebo e segredou ao 1º cabo Passos:
- experimenta “programa cautelar”.
Embora a contra gosto, o 1º cabo colocou a voz e cantarolou a suposta senha, como se estivesse a representar numa revista de madame La Féria:
- Prontos pá, programa cautelar. Estás satisfeito?
Do outro lado da noite ouviu-se uma descarga intestinal inusitada.
Não reconhecendo a senha como válida e pressentindo que teria de tomar uma decisão complicada, o 2º cabo Seguro acabara de sujar as truces imaculadas que recebera de espólio na última refrega com o furriel Costa.
Tentando recompor-se e assumir de novo uma atitude ofensiva de táctica defensiva, o 2º cabo tapou as narinas com o polegar e o indicador, berrando com voz anasalada e com quanta força tinha, o que ainda tornou o ultimato mais hilariante para os seus interlocutores:
- Último aviso: ou dizem a merda da senha, ou o cabrão dos cornos espetam-se no tiro!
Sentindo o odor a fezes moles e temendo uma recaída da moral dos investidores, o sargento-mor tentou uma vez mais assumir o controlo da situação. Colocou as mãos em concha à volta da boca para amplificar o som e vociferou para o escuro, alto e bom som:
- Camaradas subalternos, deixem-se mas é de brincadeiras e entendam-se lá que eu não tenho a noite toda para estas pintelhices. A conversa já me está a cheirar mal e já não tenho idade para andar ao relento até tão tarde. Acho que já apanhei um resfriado. Por acaso alguém tem por aí uma pastilha para a garganta? De preferência com sabor a laranja. Hum?
Pressentindo que o tempo se esgotava e que não lhe restava outra alternativa, o 2º cabo tentou ensaiar a melhor saída:
- Não volto a avisar, ou me dizem a puta da senha ou… - a frase foi interrompida pela voz esganiçada da generala Angela que tentava descansar numa tenda montada a um bom par de metros da linha de frente.
- Pouco barrulho que eu prreciso de descansarr a cabeça! Se continuam a fazerr barrulho mando-vos darr uns açoites e corrtarr na rração!...
- Outra vez? – questionou entre dentes o 2º cabo.
- Algum prroblema 2º cabo? – retorquiu a generala, que tinha ouvido de tísico.
- Nenhum, senhora generala. Eu só queria mesmo era saber a senha…
Apercebendo-se que o precipício estava a um passo, o sargento-mor procurou no bolso do camuflado um pedaço de papel onde tinha rabiscado um armistício para situações de emergência. Em vão. O pedaço de papel parecia ter desaparecido.
Exasperado teve um assomo de memória, tinha utilizado o pedaço de papel para travar a perna da mesa da cozinha que não parava de balançar, enquanto ele e a sua Maria comiam a sopita agora servida pelas Irmãs da Caridade, após a brutal redução que sofrera no pré.
- Ó 1º cabo, tente lá mais uma vez, a vez se o gajo se cala para a generala descansar! – ordenou o sargento-mor.
- Está bem, mas agora é à minha maneira – retorquiu o 2º cabo. - Eh pá, ainda estás por aí?
Agoniado e nauseado pelo cansaço e pelo odor que lhe impregnava as truces, o 2º cabo reuniu todas as forças que tinha e, não contendo um segundo fluxo de ventre, respondeu:
- Agora é que é a sério, se não me dizem a senha espeto uns cornos no cabrão do tiro!
- Limpinho, limpinho! – berrou exultante o 1º cabo, convencido que a sua intervenção salvífica um dia seria reconhecida e assinalada com um feriado nacional não comemorado e uma lápide em campa rasa com os seguintes dizeres: “Aqui repousa o abençoado 1º cabo Passos, que nos livrou da troika e que possibilitou uma saída limpa. Pelos relevantes serviços prestados à nação, o povo agradecido derrama lágrimas de reconhecimento.”
Aliviado pela correcção da senha o 2º cabo ergueu os olhos ao céu e glorificou Jesus por mais um campeonato.
- Ok pessoal, avancem que eu vou começar a assar as chouriças. O pipo está ali debaixo dum chaimite. Vão lavar as mãos e sentem-se à mesa.

  


(1)nota do autor:
Apesar das leis da física, da química e do manual de instruções, nem sempre a morte é irrevogável. Que o diga Miguel Relvas que ressuscitou num Congresso da Herbalife, alguns meses após falecimento por arakiri.



2 comentários:

  1. Sem gosto e sem sabor. Apenas com cheiro. Podes voltar a hibernar.

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  2. A. Constânciomarço 28, 2014

    Até que enfim.
    Eu sei, e falo por mim, que não é fácil libertar o espírito quando o nosso estado de alma nos tolhe a vontade de intervir, mas agradeço-lhe este texto, que espero marque o regresso regular do prazer de o ler.

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