Ao contrário do que é habitual,
hoje Lurdes Rata estava de bom humor, quase eufórica. Enquanto limpava o pó a
bom ritmo, trauteava a compasso uma marcha com letra bizarra – “lá vai o povo
cantando e rindo / de braço dado com a alegria / não temos pão mas temos vinho
/ para animar o nosso dia“ – lembrei-me logo d’o Botas e da famigerada frase “beber
vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Senti náuseas…
- O que é que se passa contigo,
Lurdes?
- Logo à noite vou marchar! –
respondeu prontamente com um sorriso tão largo que deixava a descoberto o
espaço vazio que em tempos fora preenchido pelos molares.
- Como assim? – questionei.
- Não me diga que não sabe que
hoje começam as marchas populares!? Não vai ver?
- Cruzes canhoto!
- Porquê? – perguntou indignada.
- Sabes Lurdes, sou um acérrimo
defensor das tradições e da preservação dos usos e costumes. A cultura popular
é um dos bens mais preciosos que podemos possuir e, tal como qualquer tesouro
que se recebe, deve ser cuidado para que não se perca, por respeito a quem no-lo
legou, mas também por respeito às gerações vindouras. Mas diz-me lá Lurdes, o
que é que essa coisa das marchas populares tem a ver com a nossa Marinha
Grande? Desde quando é que os Santos Populares são uma tradição na nossa terra?
Sabes o que é que me custa, sabes? O que me custa é olhar para esta cidade e
perceber que cada dia que passa aquilo que era genuinamente nosso se vai
perdendo, esfumando na espuma dos dias, sem que ninguém pareça importar-se
muito com isso. Tudo o que tem a ver com a cultura vidreira, com o pinhal, com
o património industrial, com a nossa identidade, está a transformar-se numa
quimera, numa vaga memória, e as memórias apagam-se ao ritmo do ciclo da vida.
Os teus filhos sabem o que é um mestre vidreiro? Um lapidário? Um pintor? Os
teus filhos já ouviram falar em colher, fechar o molde, levar acima, roçar? Os
teus filhos sabem o que é o bojo ou a marisa? Alguma vez explicaste aos teu
miúdos o significado de apanhar a espiga? Eles sabem o que é o penisco? Alguma
vez se lambuzaram com um bolo de pinhão? Os teus filhos alguma vez olharam para
uma bicicleta como um meio de transporte? – as palavras saiam-me de jorro, quase
me impedindo de respirar – Alguma vez lhes contaste que o avô deles, e o bisavô
deles, e o avô do bisavô, faziam nascer obras de arte de uma bola
incandescente? Quantas vezes é que já fizeste uma sopa do vidreiro para a janta
dos garotos? E quantas vezes é que já foste com eles ao Mac Donald’s? Vá, diz-me!?
Lurdes olhou-me de alto a baixo e
retorquiu – Você passou-se. Enfim. O que me interessa é que hoje à noite vou
marchar mais os meus garotos, no estádio. Essa é que é essa!
Senti-me angustiado. Dei meia
volta e fui ver do rafeiro que no patim destruía o terceiro vaso de buganvílias
numa semana. Há muito que tinha esta espinha entalada na garganta. Não resolvi
nada, mas pelo menos desabafei. Sou mesmo vacão - a espinha continua atravessada.
Inadvertidamente deixei que duas grossas lágrimas rolassem. O rafeiro lambeu-as,
despreocupado.
A Lurdes tem razão, o relaxado passou-se.
ResponderEliminarNa tarde de sexta feira, precisei de ir às Finanças, porque o Gaspar achou que declarei muito dinheiro gasto em despesas de saúde no meu IRS. Como aquela casa estava a abarrotar de Contribuintes zelosos, que queriam cumprir o seu dever cívico de contribuir para o equilíbrio das contas públicas, resolvi voltar mais tarde e aproveitei para dar uma vista de olhos pelas redondezas do nado-morto Atrium e cruzei-me com um conhecido artesão vidreiro, que fez uma bicicleta de corrida quase com a dimensão normal e me confessou que há muito que deixara a "arte" e agora dedicava-se à fisioterapia.
ResponderEliminarTinha passado pelo Crisforme como formador, mas até isso se esfumou.
Como ele, disse-me, quase todos os vidreiros abandonaram a actividade, ou por desânimo ou porque se reformaram. A transmissão do saber quebrou-se e, hoje, a história e as tradições de um povo que temperou o seu carácter à boca do forno, estão a dissipar-se no vazio cultural em que caímos.
Se nestes últimos 8 anos, os responsáveis políticos eleitos tivessem completado o projecto do Museu do Vidro, investindo no estúdio de produção ao vivo e nos ateliers de pintores, lapidários, de pantogravura e de artesãos com venda directa ao público, talvez ainda fosse possível fixar as nossas raízes a um passado histórico que não queremos deixar esquecer.
Bem sei que é mais fácil canalizar uns trocos para as Festas de S. António e o retorno em popularidade é mais rápido, como convém quando se aproxima a data de eleições.
Esqueci-me de dizer que a bicicleta é toda em vidro.
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