- Quem vem lá faz alto! – berrou
inseguro o 2º cabo, segurando desajeitadamente a G3 nas mãos trémulas e
apontando-a sem grande convicção em todas as direcções.
A noite, escura como breu, não
deixava enxergar um palmo à frente do nariz. O silêncio, apenas entrecortado
pelos pios das aves nocturnas, que mais se assemelhavam a gritos lancinantes de
almas depenadas pela maldita crise, tinha-lhe permitido identificar no sonar do
instinto de sobrevivência o ruído de passos furtivos na sua direcção. A
brilhante moleirinha do 2º cabo Seguro recordava agora a utilidade de todos os
ensinamentos que recebera durante a recruta Jota - “Se o cabrão se aproximar de
ti e não disser a senha, espeta-lhe um tiro nos cornos! Há divergências que são
insanáveis e só a morte é irrevogável(1). Nunca te esqueças que a hesitação é a
morte do artista e um gajo tem de se mostrar sempre confiante!”.
Do outro lado uma voz folgazona
cantarolou com timbre de barítono:
- Calma pá, sou eu, o 1º cabo
Passos, pá!
- A senha! – gritou o 2º cabo, à
beira dum ataque de nervos – Se dás mais um passo nos cornos espeto-te um tiro
no cabrão!
A tensão condicionava-lhe o
raciocínio e a fórmula de guerra, repetida vezes sem conta pelos instrutores do
aparelho, saia-lhe da boca de forma desordenada. Do outro lado ouviram-se
risinhos.
Os segundos que se seguiram pareceram-lhe
uma eternidade. Porventura teria coragem para disparar?
Após alguma hesitação, do outro
lado do breu o 1º cabo Passos, que se fazia acompanhar pelo sargento-mor Silva,
voltou a tentar quebrar o gelo:
- Eh pá, baixa lá a bazuca a que
gente só quer dar dois dedos de conversa, pá.
Como um autómato o 2º cabo Seguro
ripostou com a firmeza dum guerreiro pigmeu:
- Repito, senão dizes a senha
espeto-te uns cornos no tiro do cabrão!
Do outro lado nova risada.
- É pá, a senha é… a senha é… é…
hi, hi, hi…
Pressentido que a coisa podia
descambar e que ambos podiam explodir de riso a qualquer momento, o sargento-mor
puxou dos galões baços de sebo e segredou ao 1º cabo Passos:
- experimenta “programa cautelar”.
Embora a contra gosto, o 1º cabo colocou
a voz e cantarolou a suposta senha, como se estivesse a representar numa
revista de madame La Féria:
- Prontos pá, programa cautelar.
Estás satisfeito?
Do outro lado da noite ouviu-se
uma descarga intestinal inusitada.
Não reconhecendo a senha como
válida e pressentindo que teria de tomar uma decisão complicada, o 2º cabo
Seguro acabara de sujar as truces imaculadas que recebera de espólio na última
refrega com o furriel Costa.
Tentando recompor-se e assumir de
novo uma atitude ofensiva de táctica defensiva, o 2º cabo tapou as narinas com
o polegar e o indicador, berrando com voz anasalada e com quanta força tinha, o
que ainda tornou o ultimato mais hilariante para os seus interlocutores:
- Último aviso: ou dizem a merda
da senha, ou o cabrão dos cornos espetam-se no tiro!
Sentindo o odor a fezes moles e
temendo uma recaída da moral dos investidores, o sargento-mor tentou uma vez
mais assumir o controlo da situação. Colocou as mãos em concha à volta da boca
para amplificar o som e vociferou para o escuro, alto e bom som:
- Camaradas subalternos,
deixem-se mas é de brincadeiras e entendam-se lá que eu não tenho a noite toda
para estas pintelhices. A conversa já me está a cheirar mal e já não tenho
idade para andar ao relento até tão tarde. Acho que já apanhei um resfriado. Por
acaso alguém tem por aí uma pastilha para a garganta? De preferência com sabor
a laranja. Hum?
Pressentindo que o tempo se
esgotava e que não lhe restava outra alternativa, o 2º cabo tentou ensaiar a
melhor saída:
- Não volto a avisar, ou me dizem
a puta da senha ou… - a frase foi interrompida pela voz esganiçada da generala Angela
que tentava descansar numa tenda montada a um bom par de metros da linha de
frente.
- Pouco barrulho que eu prreciso
de descansarr a cabeça! Se continuam a fazerr barrulho mando-vos darr uns
açoites e corrtarr na rração!...
- Outra vez? – questionou entre dentes
o 2º cabo.
- Algum prroblema 2º cabo? – retorquiu
a generala, que tinha ouvido de tísico.
- Nenhum, senhora generala. Eu só
queria mesmo era saber a senha…
Apercebendo-se que o precipício estava
a um passo, o sargento-mor procurou no bolso do camuflado um pedaço de papel
onde tinha rabiscado um armistício para situações de emergência. Em vão. O
pedaço de papel parecia ter desaparecido.
Exasperado teve um assomo de
memória, tinha utilizado o pedaço de papel para travar a perna da mesa da
cozinha que não parava de balançar, enquanto ele e a sua Maria comiam a sopita agora
servida pelas Irmãs da Caridade, após a brutal redução que sofrera no pré.
- Ó 1º cabo, tente lá mais uma
vez, a vez se o gajo se cala para a generala descansar! – ordenou o
sargento-mor.
- Está bem, mas agora é à minha
maneira – retorquiu o 2º cabo. - Eh pá, ainda estás por aí?
Agoniado e nauseado pelo cansaço
e pelo odor que lhe impregnava as truces, o 2º cabo reuniu todas as forças que
tinha e, não contendo um segundo fluxo de ventre, respondeu:
- Agora é que é a sério, se não
me dizem a senha espeto uns cornos no cabrão do tiro!
- Limpinho, limpinho! – berrou exultante
o 1º cabo, convencido que a sua intervenção salvífica um dia seria reconhecida
e assinalada com um feriado nacional não comemorado e uma lápide em campa rasa com
os seguintes dizeres: “Aqui repousa o abençoado 1º cabo Passos, que nos livrou
da troika e que possibilitou uma saída limpa. Pelos relevantes serviços
prestados à nação, o povo agradecido derrama lágrimas de reconhecimento.”
Aliviado pela correcção da senha o
2º cabo ergueu os olhos ao céu e glorificou Jesus por mais um campeonato.
- Ok pessoal, avancem que eu vou
começar a assar as chouriças. O pipo está ali debaixo dum chaimite. Vão lavar
as mãos e sentem-se à mesa.
(1)nota do autor:
Apesar das leis da física, da
química e do manual de instruções, nem sempre a morte é irrevogável. Que o diga
Miguel Relvas que ressuscitou num Congresso da Herbalife, alguns meses após
falecimento por arakiri.